Há que admirar um livro cujo título diz tudo. A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia é realmente uma viagem, e é realmente maravilhosa. Mais que um conjunto de fábulas, menos que um punhado de mitos, esta é a grande geografia sentimental da Suécia, um compêndio de beleza a descobrir na companhia de um bando de patos-bravos (dos verdadeiros) ou às costas de um ganso que não se resignou a ser mais um animal domesticado.
Numa demonstração de um raro sentido de oportunidade e mesura que nunca chega a desertar o texto, Selma Lagerlöf não se delonga em apresentar Nils, rapazinho mau como as cobras que faz a sua aparição no início da narrativa. Ao contrário do que seria de esperar num romance destinado a acompanhar as viagens de um rapaz sueco, não se amontoam longos parágrafos descritivos ou epopeias de crueldade juvenil – seja no início, no corpo, ou no final da obra. Ao invés, a autora prefere deixar os animais da granja oferecerem os seus próprios testemunhos de carácter – cujas convincentes interjeições intersticiais muito pouco lisonjeiras não tardam a fazer sentido aos ouvidos de um Nils entretanto transmogrificado num minúsculo gnomo. Mas, superado o choque inicial, o rapaz compreende que há fados mais funestos e abraça a sua nova condição com optimismo e energia. Entre as asas do rebelde ganso, encabeça a rota da grande migração até esse paraíso de Primavera que é a Lapónia.
Medindo as suas palavras com parcimónia, a veneranda autora desfaz assim – sem hipótese de riposta – o preconceito de que poderíamos estar perante uma figura com um defeito unidimensional exemplarmente definido, um sujeito vil, portador de uma daquelas falhas tão impecavelmente delineadas que se diria existirem somente na expectativa de serem corrigidas ou redimidas pelas lições resultantes de uma fábula com a mesma limpeza e exactidão clínica com que uma peça de puzzle encaixa noutra. Este livro não é contudo um mero conjunto de fábulas, e se nunca mergulhamos de pleno na psique de Nils, a verdade é que o rapazinho se assemelha mais a um herói de Bildungsroman do que a um aventureiro ocasional do rocambolesco virtuoso. A viagem de crescimento em que embarca é certamente também ela espiritual, e a natureza a sua grande impulsionadora reformista.
Mas a grande protagonista é indubitavelmente a Suécia. Assombrosa, é ela o palco, ela o espaço aberto, o espírito telúrico que pulsa sob um firmamento selvagem. Ela é o agon em si, o ponto fulcral em redor do qual se congrega a vida e as suas causas. Nada menos que a Suécia para regenerar Nils ou conduzir Akka de Kebnekaise até à Lapónia, frustrar a raposa Esmirra ou envolver os pateiros Martin e Asa no círculo da vida e da morte. A força desta narrativa é tal que só apetece bradar, a uma aurora boreal ou por cima de um lago adormecido, que belo é o mundo (ou o país) que tais criaturas contém.
Veja-se ou não neste livro um exemplo distinto de literatura para crianças (e a grande questão que se suscita é a de saber se os livros infantis que hoje se produzem ainda serão lidos daqui a cem anos, como este), há que considerar o realismo mágico de Largelöf profundamente acessível e, no entanto, sugestivo de ideias colossais que lhe subjazem em mitologia e imaginário. Uma saga? De qualquer modo, uma magnífica súmula nórdica de sensibilidades.
Não sei se inspirado pelo seu bucolismo, visitei a Feira do Livro um pouco depois de terminar a leitura desta história, e não resisti então a trepar o parque até ao recanto da estufa fria para olhar um bocadinho para os patos e os gansos. Um velhote atirava côdeas de pão para sítios judiciosamente escolhidos, e a grande massa de aves grasnava e piava e corria de um lado para o outro. Há certas coisas – como a celebração da vida – que não se compreendem a não ser com uma certa proximidade.
Lembrei-me então de uma anedota narrada pelo desenhador Hayao Miyazaki durante a formação dos storyboards de Sen to Chihiro no Kamikakushi (A Viagem de Chihiro). Ele explicava à equipa de imberbes animadores como idealizava a representação de um determinado gesto, e procurava que eles o desenhassem como se a personagem em causa estivesse a resgatar uma bola de ténis do focinho de um cachorro mais teimoso. Os rapazinhos entreolhavam-se, mudos. Após alguns momentos de gesticulação exemplificativa, o mestre exclamou, um tanto incrédulo: ‘o quê, vocês nunca brincaram com um cão? ‘
Já brinquei com um cão, mas sou um rapaz citadino que não se recordava das aves e dos seus pescoços altivos, quase felpudos. Um dos gansos fitou-me com os seus olhos azuis (eu nem sequer sabia que tão penetrante coloração era possível nos anatidae). Não há dúvida que todos os olhos são milagres inexplicáveis, evidências para lá das certezas. Talvez por isso mesmo Darwin nunca os tenha sabido explicar.
E embora o pensamento fosse pueril, não me foi difícil imaginar um pequenino gnomo, de nome Nils, trepando para aquele dorso e descolando em direcção às nuvens, uma mão minúscula segurando o gorro branco…