Ars amatoria

É a ligeireza, a cumplicidade, é a identificação total, mútua. Ninguém nos pede que dancemos assim, mas a felicidade tem de estar nestes olhares cruzados e risos partilhados. Doce carpe diem que preenche e acrescenta, disse-me.

Penso que o deslumbramento e o corrupio serão mesmo estes.

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A vertigem da vida medida em poemas

Devemos ignorar um poema simplesmente porque é popular? Ler o Canto V do poema Marmion, de Sir Walter Scott, tem sempre a força de uma descoberta, com a célebre estrofe 17 a encabeçar a surtida.

Had I but fought as wont, one thrust
Had laid De Wilton in the dust,
   My path no more to cross.
How stand we now?—he told his tale
To Douglas; and with some avail;
   ‘Twas therefore gloomed his rugged brow.
Will Surrey dare to entertain,
‘Gainst Marmion, charge disproved and vain?
   Small risk of that, I trow.
Yet Clare’s sharp questions must I shun;
Must separate Constance from the nun –
Oh, what a tangled web we weave,
When first we practice to deceive!
A Palmer too!—no wonder why
I felt rebuked beneath his eye:
I might have known there was but one
Whose look could quell Lord Marmion.”

A resposta à primeira pergunta é obviamente não, sendo certo que a popularidade de um poema introduz distorções na sua interpretação. “Popularidade”, aqui, é naturalmente um conceito móvel, porque se o Marmion já foi famoso, só dois versos ali em cima perdidos restam no imaginário popular – “Oh, what a tangled web we weave, / when first we practice to deceive!” Estes sim, famosos, antes e depois, podiam originar determinados comentários: “o quê? A Rendição da Luz, bastião do rebuscado, a assinalar um poema popular e que metade da população inglesa declamava  há algumas décadas? Bem, aquele António entrou mesmo em declínio. O que se segue, os Beatles?

A little more than kin, and less than kind, ou talvez mais Dylan e Cohen, se tivesse de escolher. Seja como for, na semana passada pensei em escrever um texto mais ou menos longo sobre o Marmion em rapidamente percebi que a minha preocupação pessoal não era tanto fazer um excurso sobre os temas envolvidos mas ressalvar que o meu conhecimento deste poema não se devia ao facto de ter crescido numa biblioteca poeirenta sob os auspícios de uma governanta inglesa e um pai de nome Eustace Mandeville Wetenhall Tillyard ou algo de semelhante.

Por mais estranho que pareça, a primeira vez que ouvi estes versos foi numa comédia americana dos anos dourados de Hollywood (o Wonder Man, de 1945, com Danny Kaye e a linda Virginia Mayo, o que, pensando melhor, é capaz de ser ainda mais comprometedor para a minha imagem do que a versão da biblioteca poeirenta de Thrushcross Grange com uma primeira edição do Marmion). O filme, que até é bem divertido, coloca Kaye a interpretar o papel de dois irmãos gémeos (Dingle, o intelectual, e Buzzy, o boémio), com as confusões inerentes à troca de papéis abrupta que a morte do segundo provoca. É assim que, saturado de ansiedade, Dingle declama os versos acima referidos enquanto sai de plano (há um vídeo no Youtube, e esta cena está no minuto 7:00).

Poder-se-ia escrever um longo ensaio sobre a atitude do feliz ajudante dos bastidores que, oprimido por uma vida de labuta diária sem sentido, encontra a sua comoção na poesia de Sir Walter Scott e reconhece instintivamente uma das passagens mais célebres do cânone ocidental. Tudo isto a propósito de um poema que nos conta a história de uma trama amorosa no contexto de um dos mais bizarros episódios da Guerra da Liga de Cambrai (a par das alianças-gelatina de Veneza, do esquizofrénico alinhamento do Sacro Império Romano, e do oportunismo do Duque de Ferrara, cada qual mudando mais vezes de mãos do que um mercenário suíço no século catorze).

Ora se, na semana passada, os versos regressaram de um canto sináptico escuro do meu crânio e me atingiram como um soco, a verdade é que a vida progride muito mais rapidamente que a leitura ou a memória de poesia, de tal modo que, Berenice ultrapassada, o mote de hoje é mais tributário de Dorothy Parker. Esta, mesmo a brincar, acaba por dizer tudo, rindo com uma lágrima no canto do olho, atordoada de álcool. Em A Very Short Song, o habitual lamento – juvenil, mesmo: Once, when I was young and true, / Someone left me sad- / Broke my brittle heart in two ; / And that is very bad – desemboca numa radical inversão de sentimentos, como se Parker tivesse surpreendido um espelho depois do primeiro verso e caído em si. Enceta dois aforismos, encontra uma conclusão:

Love is for unlucky folk,
Love is but a curse.
Once there was a heart I broke;
And that, I think, is worse.

Tinha um Portable Dorothy Parker que ia oferecer a Berenice se os meus melhores planos se tivessem concretizado. A fatuidade amorosa tem destas coisas. Mas que raio passou pela minha cabeça? Ridículo. Felizmente, os melhores planos urdidos por ratos e homens são facilmente gorados pelo imprevisível e pelo inconstante, de tal modo que a vida real avança a um ritmo muito superior ao dos significados que vou descobrindo na poesia. E sempre fiquei com o meu Portable Dorothy Parker, de que gosto mesmo muito.

A simplicidade dos últimos dois versos do A Very Short Song é atroz. Parker-a-vítima (poder-se-ia dizer, o artista-vítima, cujas perspectivas dolentes informam o acervo de muita poesia e música ocidental) queda-se por um momento e reflecte no passado. É mau sofrer – ora que grande platitude! – mas porventura é muito pior fazer sofrer ou, voando com o último verso – muito mais doloroso escolher fazê-lo. Se tivermos o conhecimento da primeira realidade, decidir infligir a segunda é suficiente para nos manter insones durante alguns dias.

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Cinema do novo milénio

There Will be Blood, Paul Thomas Anderson, 2007.

Fotografia de Thomas Hoepker, tirada no 11 de Setembro de 2001, publicada cinco anos mais tarde por receio da controvérsia.

O fotógrafo tem um artigo na Slate em que desenvolve as circunstâncias que rodearam a captura deste momento (é visível a sua relutância em promulgar uma determinada interpretação para esta imagem – e o seu sentido de decoro). Um obrigado e um abraço ao Luís M. Jorge, em cujo blog vi esta fotografia pela primeira vez.

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Até ao último momento, talvez

–     Para a Catarina.     –

O BARCO EM QUE SE DEVE

deixar baloiçar
um homem. Uma mulher

em que se pensa, em que o homem pensa,

até ao último momento, talvez.
Devemos então fechar os olhos
para ver como, mar calmo,
e vista clara, o barco uma vez
após outra, cada vez mais penetrante,
alcança o mesmo promontório.

– Hans Faverey

O poema, claro, está no “Uma Migalha na Saia do Universo“, antologia da Assírio & Alvim que me vendeste. Ainda tem um post-it colocado pela livreira em questão, nesta página.

Composição estrófica de pendor poético orquestrada unicamente com citações desgarradas e trechos soltos de uma leitura antiga de Facino Cane de Balzac (numa altura da minha vida em que dava muita importância ao círculo das quintas)

 

Les timides œillades des jeunes filles bien élevées.
Ce faubourg
(flageolet).

Dans l’embrassure d’une croisée,
Leur redingote rougeâtre
Ils se tinrent cois
Ses rides s’agitèrent.
Le Vénitien ne flairait

Une espérance égaya ses rides
Il devint comme un homme qui monte sur son dada
[oh !] la cécité rend les communications intellectuelles beaucoup plus rapides
en défendant à l’attention de s’éparpiller sur les objets extérieurs.

Transporté dans un cachot des puits
Il gambadait dans l’or.

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Mais um regresso

É altura de regressar, mas também de resistir e até combater contra o impulso de deserdar todas as palavras que se aninham no passado. Mais fácil mudar de template, aqui para a casa, mais fácil ir revendo as ligações, pouco a pouco, mais edificante viver com o desconforto daquilo que se escreveu no passado e que continua a informar o meu futuro. Estou com Leonard Cohen, e talvez com Pedro Mexia também: desconfiemos um pouco das ideias novas, até que delas precisemos.

Pequena diferença – só não me “corrijam” outra vez.

 

Recebi um bilhete, firmado por Tosca. Quando li a assinatura, estremeci de pavor, porque me passou pelo espírito a rival da Condessa de Attavanti, a assassina de Scárpia… Entrevi o punhal da bela amante de Cavarodossi e pareceu-me ouvir o trágico:

Questo è il bácio di Tosca.

Mas, qual história! Esta. em vez de admirar os quadros do seu amante, pensa como há de apurar os fricassés e apurar os môlhos. No meio dos seus cuidados culinários, volta-se para mim e, em vez do questo è il bácio, atira-me uma interrogação:

– «Qual é o plural de môlho? mólhos ou môlhos?» –

Ah! minha senhora. Vossa Excelência nunca viu decerto as pobres serranas avergadas sob os mólhos de lenha, galgando atalhos, pisando tojos… Vossa Excelência saboreia os seus deliciosos môlhos, se é que os não saboreia também algum Cavaradossi da Rua dos Fanqueiros. Os mólhos pesam, os môlhos sabem bem, muito melhor que questo bácio di Tosca.

Cândido de Figueiredo

Falar e Escrever – Novos Estudos Práticos da Língua Portuguesa, ou Consultório Popular de Enfermidades da Linguagem, Vol. II – XCII, 1954.

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Era capaz de dar um bom piropo

 

Chamava-se Prócris (era irmã de Oritia, se acaso Oritia,
a que foi raptada, te chegou mais facilmente aos ouvidos).
Se quisesses comparar a beleza e o carácter das duas,
era ela a mais digna de ser raptada.

Ovídio, Metamorfoses (VII, 694 – A história de Céfalo e Prócris)

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Acordar com Deus e Marx na mesa de cabeceira

At the same moment as structuralism bracketed off the real object, it bracketted off the human subject. Indeed it is this double movement which defines the structuralist project. The work neither refers to an object, nor is the expression of an individual subject; both of these are blocked out, and what is left hanging in the air between them is a system of rules. This system has its own independent life, and will not stoop to the beck and call of individual intentions. To say that structuralism has a problem with the individual subject is to put it mildly: that subject was effectively liquidated, reduced to the function of an impersonal structure. To put it another way: the new subject was really the system itself, which seemed equipped with all the attributes (autonomy, self correction, unity and so on) of the traditional individual. Structuralism is ‘anti-humanist’, which means not that its devotees rob children of their sweets but that they reject the myth that meaning begins and ends in the individual’s ‘experience’. For the humanist tradition, meaning is something that I create, or that we create together; but how could we create meaning unless the rules which govern it were already there? However far we push, however much we hunt for the origin of meaning, we will always find a structure already in place. This structure could not have been simply the result of speech, for how were we able to speak coherently in the first place without it? We could never discover the ‘first sign’ from which it all began, because, as Saussure makes clear, one sign pressupposes another from which it differs, and that another. If language was ever ‘born’, Lévi-Strauss speculates, it must have been born ‘at a stroke’. Roman Jakobson’s communicative model, the reader will remember, starts from an addresser who is the source of the transmitted message; but where did this addresser come from? To be able to transmit a message at all, he or she must already be caught up in and constituted by language. In the beginning was the Word.

Terry Eagleton

Literary Theory: An Introduction (Structuralism and Semiotics)

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Tenho feito muito tribunal ultimamente

 

CORREGEDOR

Ó senhor procurador!

PROCURADOR

Beijo-vo-las mãos juiz,
que diz este arrais que diz?

DIABO

Que sereis bom remador,
entrai bacharel doutor
e ireis dando à bomba.

PROCURADOR

E este barqueiro zomba?
Folgatais de zombador?
Essa gente que hi está
pera onde a levais?

DIABO

Para as penas infernais.

PROCURADOR

Dixe! não vou eu pera lá
outro navio está cá
muito milhor assombrado

DIABO

Ora estais bem aviado,
Entrai muiteramá.

CORREGEDOR

Confessastes-vos doutor?

PROCURADOR

Bacharel sou, dou-me o demo
não cuidei que era extremo
nem de morte minha dor,
e vós, senhor corregedor?

CORREGEDOR

Eu mui bem confessei
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor.
Porque se o não tornais
não vos querem absolver,
e é mui mau devolver
depois que o apanhais.

DIABO

Pois porque não embarcais?

CORREGEDOR

Quia esperamus in Deo.

DIABO

Embarquemini in barco meo
pera que esperatis mais?

 

Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno

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Promessa

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

Césario Verde

(Deslumbramentos, O Livro de Césario Verde)

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Máscula lisonja

The absurdity of this male flattery reached its peak in the public academic art of the nineteenth century.

Men of state, of business, discussed under paintings like this. When one of them felt he had been outwitted, he looked up for consolation. What he saw reminded him that he was a man.

John Berger, Ways of Seeing

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“Sumptuosos e inovadores trombones melódicos”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Era um jantar de tertúlia que envolvia amigos mais velhos da minha família, e um poeta madeirense acabara de nos brindar com uma breve exposição. A temida pergunta, inevitável, lançada como uma rede aos comensais, surge pouco depois: “Alguém tem alguma questão?

Ninguém tinha. Perante o silêncio, o bom homem resigna-se ao encolher de ombros e diz, genialmente: “Bom, o silêncio depois de Mozart também é Mozart“.

Os silêncios são importantes. Sviatoslav Richter sentava-se ao piano e contava até trinta antes de iniciar o concerto. Assim que as pessoas começavam a ficar alarmadas ou a resfolegarem nos assentos e a NKVD iniciava planos de deportação forçada, a primeira nota soava. Divina e bela. E isso, assegurava Richter, era uma ínfima teatralidade que educava os ouvintes para a importância do silêncio no decurso da peça. Nenhuma pausa seria doravante ignorada.

Pausas e contrastes foram os grandes ausentes na Metropolitana de Lisboa, que no domingo passado nos apresentou um curto mas eclético programa composto pela abertura ao “Rei Estevão” de Beethoven, o Concerto para Violoncelo No. 1 em Mi bemol Maior de Shostakovic, e a Sinfonia n.º 8 (ou n.º 7, ou n.º 9, entendam-se) em Dó Maior de Schubert, dita a “Grande“.

A aspereza inerente a Shostakovic revelava uma escolha ousada. Nos seus termos, deveria permitir apreciar a sinfonia seguinte, a Grande, pela agradável melodia tipicamente arredada das intricadas obras do russo e assim confrontar duas sonoridades distintas. O concerto para violoncelo afirma-se realmente como uma composição passiva-agressiva em que o desenvolvimento isolado de uma variação de quatro notas dá seguimento a três movimentos contínuos, com firme atenção transgressora ao criptograma Ré – Mi bemol – Dó – Si, ou DSCH. Atravessando as regiões escarposas da rudeza e da melancolia, o violoncelo faz-se acompanhar da orquestração incisiva e dramática, marca de mestre do seu compositor. Enquanto solista, o francês Xavier Phillips foi triunfante, absolutamente compenetrado numa das composições mais fracturantes de Shostakovic – e uma das mais exigentes também.

E assim, depois de Dimitri Shostakovic, uma pessoa deveria sentir-se grata por escutar melodia tão angélica quanto aquelas que Schubert soube compor às centenas, bastando recordar as suas lieder para prever que o contraste do programa poderia ser altamente frutífero. Infelizmente, a Grande é uma obra de maturidade complexa, composta num momento da vida de Schubert que o austríaco procurava aproximar-se das exigências da harmonia e do contraponto (o esmagador génio do período tardio de Beethoven cedo provocou crises de criatividade nos seus contemporâneos, o que facilmente se compreende com cartões de visita como a Hammerklavier, as Variações Diabelli ou, evidentemente, a Coral). A Grande não é seguramente um paradigma de nenhuma destas formas mas contém, envolta na sumptuosidade dos inovadores trombones melódicos(tm), uma véritable teia de vozes que se interrompem, cruzam e debatem gentilmente, num diálogo de exortações etéreas que nunca alcançam o desenvolvimento e cortes abruptos que contrariam o límpido encerramento do scherzo e do finale.

A Metropolitana tocou tudo isto admiravelmente, sob a batuta do americano Mark Stringer. As únicas observações críticas seguem o curto da sonoridade demasiado uniforme (contraste, contraste…) e de um ritardando imbecil em duas secções do primeiro Andante. Raros momentos em que a orquestra parecia perdida e em que os violinos se entediavam mutuamente com a sua ligeireza demasiado aveludada (quando é que vão aprender que as cordas autorizam incisão sem volume?). Também o primeiro violinista devia dedicar menos tempo a pentear-se e mais tempo a tentar manter o tempo: a única consistência da sua performance foi ter entrado infalivelmente antes da marcação dos compassos. Não sei se Stringer estava distraído ou se simplesmente se absteve de o empalar com a sua batuta a fim de salvaguardar a inocência da juventude em audiência.

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Schadenfreude

A inoperância de um prazer tão culposo como a Schadenfreude torna-se desagradavelmente óbvia quando estamos a falar de um poeta como William “Topaz” McGonagall (1825-1902). Este homem,  escocês nascido em Dundee, veraz amante de alta cultura e admirável auto-didacta considerando o meio em que nasceu, é hoje tido como o pior poeta que a língua inglesa já conheceu. Em vida, foi ridicularizado e enxovalhado por todos os que entraram em contacto com a sua obra ou as suas entusiásticas declamações. Em morte, adquiriu um estatuto de peça curiosa, de ave rara, ou de simples curiosidade domingueira que, nos triclínios de uma poltrona chuvosa, arranca sonoras gargalhadas à divertida alma que folheia um dos seus livros.

Quase apetece dizer que há limites — ou pelo menos balizas — para a prática da chacota e o saudável exercício da crueldade. Afinal de contas, é importante recordar, seus bois, que vocês são seres humanos. Peço desculpa, estou a citar Jaroslav Hašek. O que eu quero dizer é que a crueldade só tem piada quando o objecto do nosso veneno é vulnerável às vituperiosas investivadas. Agora quando as nossas melhores invectivas resvalam na couraça da indiferença o praticante da chacota fica com a impressão de estar a ser realmente insensível e javardo. É a esta conspurcação moral que tão frequentemente se acoplam as convicções do género “eu vou parar ao inferno por causa disto“.

Esquematicamente, a coisa processa-se assim:

  1. -> Sabemos que rir de X é errado;
  2. -> Queremos rir a todo o custo;
  3. -> Recordamos que rir de X está errado;
  4. -> Rimos animalescamente;
  5. -> Depois acendemos um cigarro;
  6. -> Começamos a sentirmo-nos mal;
  7. -> Tentamos esquecer que afinal estivémos a tomar prazer na antecipação do nosso desconforto futuro (naquilo que é uma modalidade extremamente masoquista e reflexa de Schadenfreude).

É que estamos a falar de um homem que era abertamente gozado pelos “publicants” das tavernas de Dundee. Que foi recusado pela Rainha e julgou estar recebendo uma menção honrosa. Em suma, e inacreditavelmente, num “Poet and Tragedian” que nunca deixou de acreditar em si próprio e que sempre conseguiu arranjar justificações para o facto de o mundo não gostar dele, o que acarta duas consequências muito importantes para a filosofia contemporânea: (i) gozar com ele torna-se menos divertido, e até bastante porco, a partir do momento em que percebemos que ele estava a falar a sério; e (ii) da próxima vez que alguém vos disser que “o importante é acreditarem em vocês próprios“, façam uma cara séria e recitem o seguinte poema, essa magnum opus do Topázio MacGonagall, sobre a mítica ponte férrea sobre o rio Tay:

“The Railway Bridge of the Silvery Tay”

BEAUTIFUL Railway Bridge of the Silvery Tay !
With your numerous arches and pillars in so grand array
And your central girders, which seem to the eye
To be almost towering to the sky.
The greatest wonder of the day,
And a great beautification to the River Tay,
Most beautiful to be seen,
Near by Dundee and the Magdalen Green.

Beautiful Railway Bridge of the Silvery Tay !
That has caused the Emperor of Brazil to leave
His home far away, incognito in his dress,
And view thee ere he passed along en route to Inverness.

Beautiful Railway Bridge of the Silvery Tay !
The longest of the present day
That has ever crossed o’er a tidal river stream,
Most gigantic to be seen,
Near by Dundee and the Magdalen Green.

Beautiful Railway Bridge of the Silvery Tay !
Which will cause great rejoicing on the opening day
And hundreds of people will come from far away,
Also the Queen, most gorgeous to be seen,
Near by Dundee and the Magdalen Green.

Beautiful Railway Bridge of the Silvery Tay !
And prosperity to Provost Cox, who has given
Thirty thousand pounds and upwards away
In helping to erect the Bridge of the Tay,
Most handsome to be seen,
Near by Dundee and the Magdalen Green.

Beautiful Railway Bridge of the Silvery Tay !
I hope that God will protect all passengers
By night and by day,
And that no accident will befall them while crossing
The Bridge of the Silvery Tay,
For that would be most awful to be seen
Near by Dundee and the Magdalen Green.

Beautiful Railway Bridge of the Silvery Tay !
And prosperity to Messrs Bouche and Grothe,
The famous engineers of the present day,
Who have succeeded in erecting the Railway
Bridge of the Silvery Tay,
Which stands unequalled to be seen
Near by Dundee and the Magdalen Green.

Lindo! Bravo, Topázio! Que Whitman das Escócias! Que elegia à complexidade inoxidável da engenharia moderna!

Só é pena que a Ponte Sobre o Rio Tay tenha caído alguns dias mais tarde:

Beautiful Railway Bridge of the Silv’ry Tay!
Alas! I am very sorry to say
That ninety lives have been taken away
On the last Sabbath day of 1879,
Which will be remember’d for a very long time.

E parecia estar a ir tão bem…

Não sei o que é mais cómico: se as rimas, se o facto da ponte ter mesmo caído. Se calhar deveria estar zangado com McGonagall, visto que a sua poesia é tão má que transmogrificou a morte de algumas pobres dezenas de almas numa belíssima ampola de humor negro. E há muito humor no facto do poema estar escrito num tom irresistivelmente factual, com a pronúncia nivelada de uma notícia financeira, em tudo não muito diferente do tipificado “we interrupt this program to bring you a special announcement: the Railway Bridge over the River Tay has just collapsed. More on this at 9. We now resume our regular programing“.

Mas esperem. A dada altura, a população de Dundee, superando o seu luto e acreditando na inexorabilidade benigna do progresso ferroviário, foi enfim agraciada com uma segunda ponte sobre o Tay, uma sóbria ponte contra cujos alicerces se empurravam memórias tristes e pressentimentos ominosos, e sob cujos arcos esmorecia o caudal negregado das vítimas inglórias.

Esta seria realmente uma bela oportunidade para meditar sobre a fragilidade da construção humana. Quantos perigos e flagelos da fé inquebrantável na modernidade!

Mas que faz o nosso poeta? Sem a menor hesitação ou lealdade, depois de dois poemas sobre o mesmo assunto, desata a elogiar a nova ponte sobre o Tay!

“An Address to the New Tay Bridge”

BEAUTIFUL new railway bridge of the Silvery Tay,
With your strong brick piers and buttresses in so grand array,
And your thirteen central girders, which seem to my eye
Strong enough all windy storms to defy.
And as I gaze upon thee my heart feels gay,
Because thou are the greatest railway bridge of the present day,
And can be seen for miles away
From North, South, East or West of the Tay
On a beautiful and clear sunshiny day,
And ought to make the hearts of the “Mars” boys feel gay,
Because thine equal nowhere can be seen,
Only near by Dundee and the bonnie Magdalen Green.

Impecável. Não me admire que algumas vozes maioritárias já consideram que McGonagall obrou afinal com propósitos satiristas. Felizmente, acho que estão mesmo errados.

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Teoria da teoria

 

If literary theory presses its own implications too far, then it has argued iself out of existence.

This… is the best possible thing for it to do.

Terry Eagleton

 

Liberta de leões proletários, desonerada de labirínticas considerações pedagógicas, este é um grande, um enorme livro de introdução à “Teoria” [Literária], cujo aturado mérito não é erodido pela inclusão de algumas rúbricas de pertinência mais duvidosa (como o sejam os “estudos” gays & lésbicos ou o “Presentismo“). Sem dúvida, estamos perante uma das exposições mais claras e apaixonantes deste género, com o bónus inesperado de Peter Barry, não se contentando com a produção deste pequeno milagre, vir ainda dar provas de perceber o que raio Derrida andou a escrever durante estes anos todos (ou pelo menos conferir-lhe o benefício da dúvida).

Beginning Theory: An Introduction to Literary and Cultural Theory já vai na terceira edição e ainda ninguém explicou ao editor que esta capa é indutora de vómitos. Mas não sejamos tão descrentes nas meta-narrativas modernas e abracemos, durante alguns momentos, a candura caótica do liberalismo humanista para apreciar a clareza do seu conteúdo.  Barry oferece uma visão cronológica e integrada da Teoria, fornecendo elementos históricos e apontamentos de algumas das conferências mais importantes da história académica recente. Fala-se, e explica-se, as sessões de Lacan, ou a polémica que uma asseveração de Braudillard lançou sobre o hiperrealismo. Contextualiza-se como é que uma afirmação de Habermas na década de oitenta provocou a célebre teorização de Lyotard sobre o que era o pós-modernismo. A fluidez e desmistificação professorial alcançada por este livro mais que compensa a violenta embolia inicial provocada por uma capa com a cara do Derrida, uma maçã, um gato, e a Judith Butler (todos ao alcance dos poderes interpretativos de Barry, com excepção do segundo).

Fortíssimos, os capítulos sobre Narratologia e Estilística, e cristalinas, as explicações sobre a evolução (ou digressão) desde os tempos do estruturalismo até ao pós-modernismo. T.S. Eliot leva muita pancada no campo do liberalismo humanista (mas, falando objectivamente e correlativamente, ele merece). O livro termina com um capítulo chamado Theory after Theory que manifesta uma certa simpatia pelos tempos da pré-Teoria e indica como as modulações e incertezas introduzidas na busca do conhecimento durante o século XX podem, afinal, fornecer uma via para a sua reanimação, sem que todavia se ressuscite o T.S. Eliot por engano.

Há também umas inclusões curiosas nesta última edição. Um capítulo gordinho sobre Ecocriticism deixou-me bastante divertido ao início, mas quando deixei de roflmar como um parvo fiquei bastante surpreendido. Longe de arvorar o mote “epá, baza lá comer relva que os animais são altamente” (obrigado, Casanova), a prática do Ecocriticism coloca em evidência certos fenómenos de apropriação linguística de realidades naturais, numa relação que tanto pode indiciar posturas dominadoras e hubrísticas como melancolismos de aspiração pastoral. Isto é potencialmente muito frutífero porque uma tal perspectiva ainda não foi condignamente explorada no campo da crítica, e sobretudo porque esta nunca se aventurou para além do estudo individual e disconexo de recursos estilísticos ou de vagas considerações sobre géneros literários (desde as pastorais latinas até ao inevitável Thoreau).

Mas depois destas directrizes (e há tanto para ler), sinto-me capaz de compreender a Op. 31, No. 2 de Beethoven (a sonata número 17 para piano, à qual o repelente Schindler fixou o nome de “A Tempestade“). Ficarei mais atento a certos aspectos de Verlaine. Virgílio dir-me-á mais. Não lerei a fúria de Aquiles e as estrebuchações do Escamandro da mesma forma. E de cada vez que um poeta reclamar uma colina para descrever uma silhueta feminina vou pensar duas vezes. O entusiasmo é tão fátuo e intenso que estou a preparar uma série de textos que partem da análise da sonata para piano acima mencionada — a despeito do meu estado civil neófito em termos de teoria musical — para realizar incursões literárias noutras áreas em que uma consciência elevada da relação literária entre o homem e a natureza pode revelar-se particularmente fascinante. Literária e não ecológica ou outra coisa que o valha. “Green Studies” é a pior coisa que se poderia ter chamado a este movimento, e o seu denominativo a grande barreira que impede a maior parte das pessoas de julgar o seu valor (um preconceito compreensível, dada as militantes euforias ecológicas du jour).

Se a coisa correr bem coloco os textos aqui, mas na verdade começo a pensar que devia era haver um curso ou emprego qualquer para este tipo de demência, ou quando muito uma bolsa dedicada àquelas pessoas que desperdiçam o tempo com este género de coisas. Sempre seria mais feliz, e não chateava ninguém.

 

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O inevitável post-inspirado-nas-pesquisas-do-Google

Mudando de assunto, alguém veio parar a este blog depois de pesquisar por “tetrâmetro trocaico cataléptico“, o que me deixa vagamente perturbado (“fotos de mulheres feias“, “como fazer uma gincana empresarial” e “lunokhod” em cirílico costumam ser os meus maiores êxitos).

Tudo um sonho, e nada mais

O Príncipe de Homburgo (Prinz Friedrich von Homburg oder die Schlacht bei Fehrbellin) não é uma peça típica de Heinrich von Kleist, mas também é bom habituar-me à ideia de que simplesmente não as haverá. Gosto, por exemplo, que o enfoque da trama se concentre sobre o sobredito Príncipe e as suas muito apreciáveis volatilidades morais. E que até os grandes eventos históricos que acotovelam as pequeninas personagens da peça se encontrem distantes ou, quando encenadas, que o sejam à distância, por meio de prolixos discursos indirectos e relatórios oficiais diferidos. Por fim, numa amplificação deste princípio, Kleist faz com que as poucas deixas atribuídas ao Príncipe não sejam as que mais comuniquem a textura do seu carácter: nesse aspecto, o espectador encontra indícios mais determinantes através das reacções periféricas de uma Natalie, de um Kottwitz, de um Hohenzollen.

O Príncipe de Homburgo é Frederico II de Hessen-Homburgo, um sonâmbulo ao serviço de Frederico Guilherme de Brandemburgo, o Grão-Eleitor prussiano em guerra contra as hostes suecas. Em vésperas da batalha de Fehrbellin, o príncipe recebe ordens claras: reunir as suas forças numa colina e carregar apenas ao sinal devido. Embriagado de emoção e bravata, não consegue resistir e acaba por ir moer a ralé prematuramente, arrastando consigo outros oficiais (entre eles, o coronel Obrist Kottwitz, velho cão de guerra sem grandes capacidades cognitivas mas pessoa de bons sentimentos e camaradagem romântica tipicamente germânico). Como reza a história, a batalha é ganha pelos brandemburgueses ao som do quarto concerto de Brandemburgo em Sol maior de Bach, virtuosamente dirigido por Karl Richter à frente da Münchener-Bach Orchester, mas o Grão-Eleitor não aprecia a desobediência  do jovem transgressor e decide condená-lo à morte.

Sim, até agora é a fórmula típica do herói condenado à morte por violação do seu dever, num destino que ele não deixará de aceitar com a máxima honra e altivez. A introdução de Natalie von Oranien, sua sobrinha, perdida de amores pelo Príncipe de Homburgo, cumpriria a inevitável figura chorosa que faz tudo por salvar o príncipe.

Eis senão quando surge aquela que veio a ser conhecida como a Cena da Morte.

Ou, mais rigorosamente, a Cena do Medo da Morte (Todesfurchtszene). Nesta controversa sequência, o Príncipe de Homburgo — apercebendo-se que não tinha sido aprisionado por mera questão de salvaguarda de aparências e que ia afinal ser fuzilado — pede à Grã-Eleitora que interceda por si.

Bom, interceder é um eufemismo. O Príncipe de Homburgo chora, funga, prostra-se ranhosamente, tira o chapéu, abraça as pernas da Grã-Eleitora, urra e — leviandade máxima! — renuncia a Natalie e desfaz qualquer compromisso que se pudesse estar formando (não fosse essa a razão oculta por detrás da severidade do Grão-Eleitor). Esqueci-me de mencionar que Natalie está presente quando isso sucede. É, no todo, um espectáculo muito pouco digno, profundamente humilhante para o Príncipe de Homburgo e Natalie (que naquele instante se apercebeu da cobardia do seu amante). Kleist subverte o molde, não cumpre o preceito: ditariam os costumes do alto romantismo prussiano que o herói não só aceitaria a sentença de morte como um patriota patriarcal, como também jamais renunciaria ao seu amor para a atenuar ou eliminar. À cobardia das leis juntar-se-ia a impensável desonra amorosa, numa justaposição venenosa que veio, só por si, justificar plenamente o péssimo acolhimento que esta peça recolheu junto dos seus contemporâneos.

A Cena da Morte é também importante por outros motivos, nomeadamente por alterar subtilmente o jogo de forças entre sexos. Natalie, em tudo a suprema desonrada, escolhe ainda assim ficar junto do Príncipe de Homburgo, envidando todos os esforços para o salvar. Mais surpreendentemente, nunca chega a pronunciar uma única palavra sobre o que se passou, o que torna as suas motivações muito menos transparentes (é fácil compreender uma personagem unilateral feita de cartão que ama o seu príncipe encantado: já não é tão fácil compreendê-la quando persiste em tal conduta depois do seu querido a ter repudiado olimpicamente). Como Natalie não é o género de pessoa a quem se possa passar um atestado liminar de estupidez, é preciso procurar uma explicação para o seu comportamento tão fiel.

A resposta pode muito bem encontrar-se na humilhação a que o Príncipe de Homburgo se sujeitou e, por conseguinte, ao descrédito masculino em que incorreu por sua própria volição. Casados, jamais ultrapassariam a Cena da Morte, o que leva Natalie a procurar um ascendente moral que lhe permitisse, a qualquer momento, recordar a indignidade do seu marido ao mesmo tempo que a colocava num pedestal mais elevado. A maneira mais fácil de fazer ambas as coisas — isto é, salvar o seu bonitão e amordaçá-lo à sua vontade — seria a de obter o perdão junto do Grão-Eleitor.

O enredo dá ainda muitas reviravoltas, mas para o que aqui interessa é que Natalie obtém mesmo uma carta de perdão, que entrega ao Príncipe. Se este a aceitasse, Natalie ficaria sempre investida de uma posição moral e relacionalmente superior: tendo sido desonrada, ainda assim salvara o seu amante, um gesto que jamais poderia ser recordado pelo Príncipe de Homburgo sem enorme vergonha. A carta de perdão torna-se o instrumento da subjugação que Natalie precisa, apesar do seu conteúdo permanecer um tanto incerto depois de tantas entradas, saídas e reviravoltas (ao ponto que nos poderíamos sentir tentados a recuperar a análise lacaniana dirigida à Purloined Letter de Poe, tal o grau de abstracção do documento).

Confrontado com o perdão do Grão-Eleitor, o Príncipe de Homburgo cai em si. Há quem diga que, naquele momento, ele finalmente aceita que a sua falha deva ser punida com a morte. No entanto, e em virtude da presente análise, tenho de levar o raciocínio até ao fim e concluir que ele simplesmente não desejava ser o devedor moral de Natalie. A sua resposta — a de assentimento honroso à execução — restabelece o equilíbrio quebrado pela irreverência de Kleist, reiterando de uma assentada duas grandes meta-narrativas insidiosamente iluministas: a do papel da honra e submissão hierárquica como mecanismo de afirmação masculina, e a da inexpugnável hegemonia moral do homem sobre a mulher. Prestidigitação impressionante de Kleist, que consegue terminar a peça ao gosto do teatro da época — densamente laudatório dos valores da pátria — ao mesmo tempo que consegue evidenciar, combater, e de facto subverter todas as linhas estruturantes desse edifício literário tão estagnante. Não fossem as arestas cortantes da Todesfurchtszene e esta peça poderia ter sido ensaiada, ao longo dos séculos, sem que os seus patronos se apercebessem do cerco que se fechava sobre a sua hipocrisia.

[Nota aos encenadores e tradutores responsáveis pela produção do Príncipe de Homburgo que esteve recentemente no CCB: “libertar” é um verbo de duplo particípio passado, cuja escolha depende da utilização do verbo “ter/haver” ou “ser/estar”.  Um exemplo talvez ajude (repete comigo, Kottwitz): “ser/estar liberto” -> “ter/haver libertado“. Agora tem cuidado, Kottwitz, porque “liberto” também pode servir de adjectivo. Nada disto é exactamente um crime de lesa-majestade, mas quando um verbo é repetido dezenas de vezes durante uma peça…]

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Apreciação diferida

“J’ai passé cinq ans avec lui pour écrire cette biographie. Mais dans la vie, mes rencontres aec lui ont été… sucrées-salées. Un jour des années 1950, j’étais au Café de la Mairie, place Saint-Sulpice, avec ma très jeune femme. Camus arrive, s’installe au zinc et n’arrête pas de la déshabiller des yeux. J’étais furieux!

Furieux! Je me tourne vers mon ami Charles-Roger Leblanc, et je lui dis: «Mais pour qui il se prend, ce con? — Il se prend pour Albert Camus!» La deuxième rencontre a été désagréable aussi. J’étais en uniforme de troufion sur le boulevard Saint-Germain avec Guy Dumur, et je l’ai trouvé horriblement antipathique, en tout cas dans le contexte de l’époque: très «pied-noir», cravate abominable, il m’a tenu des propos très agressifs. Je me souviens toujours de cela, parce que je suis revenu sur beaucoup de mes attitudes vis-à-vis de lui. Aujourd’hui, son personage me plaìt beaucoup. C’était non seulement un honnête homme, mais un homme honnête – et courageux.”

São as palavras de Oliver Todd, em conversa com Alain Finkelkraut e os jornalistas do Magazine Littéraire (Hors-série, Albert Camus). Sem conhecer a obra do escritor em profundidade, este dossier deu-me a conhecer o autor ele-mesmo com algum aproveitamento. Personagens assim não se limitam a existir e impressionar pelo teor das suas páginas; a autenticidade dos seus gestos por vezes está menos no debate ideológico do que numa pose irritante, à porta de um café no 6ème.

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Les grands chaleurs arrivèrent

Não terei sido o primeiro a ficar impressionado com a noção de dever amoroso presente nas confabulações peri-românticas e à moitié heróicas de Julien Sorel.

Com franqueza, diz alguma coisa do meu carácter que as moções do amor se tornem mais fáceis a partir do momento em que a obligatio é introduzida. Mas percebe-se; eis a introdução ex machina de um elemento de ordem exterior, de uma linha claríssima no seio de uma tempestade de indefinições, de uma causalidade tantas vezes repetida na vida exterior de uma vida em sociedade. Julien Sorel não poderia agir de outra forma, não mais do que conseguiria pensar diversamente: naquele mundo de que é feita a crónica no Le Rouge et le Noir, a aparência de racionalidade era a imperatriz constante, e o frémito do coração o seu revoltado sazonal.

Les grandes chaleurs arrivèrent. On prit l’habitude de passer les soirées sous un immense tilleul à quelques pas de la maison. L’obscurité y était profonde. Un soir, Julien parlait avec action, il jouissait avec délices du plaisir de bien parler et à des femmes jeunes ; en gesticulant, il toucha la main de madame de Rênal qui était appuyée sur le dos d’une de ces chaises de bois peint que l’on place dans les jardins.
Cette main se retira bien vite; mais Julien pensa qu’il était de son devoir d’obtenir que l’on ne retirât pas cette main quand il la touchait. L’idée d’un devoir à accomplir, et d’un ridicule ou plutôt d’un sentiment d’infériorité à encourir si l’on n’y parvenait pas, éloigna sur-le-champ tout plaisir de son cœur.

Ses regards le lendemain, quand il revit madame de Rênal, étaient singuliers ; il l’observait comme un ennemi avec lequel il va falloir se battre. (…)

Ou: como uma passagem no início de um livro que desejaríamos nunca terminar resume impecavelmente o carácter do seu maior protagonista.

Mesmo privilegiando a ambivalência do seu trato pela burguesa madame de Rênal — a qual, nessa condição, lhe motivava uma aporia de desprezo e um ímpeto sabotador a partir do interior das fortificações sociais montadas pelo seu prestigiado marido — Julien apropria-se do seu status de inimiga de sociedade para a transportar para outro pedestal, o de inimiga em sentimentos. Mudando-se a luz quente que incidia sobre esses mármores, persiste todavia a atitude de combate. Julien desconhecia-o certamente, mas quantos poetas já não tinham cantado as virtudes de uma tal postura venusiana?

Il abrégea beaucoup les leçons des enfants, et ensuite, quand la présence de madame de Rênal vint le rappeler tout à fait aux soins de sa gloire, il décida qu’il fallait absolument qu’elle permît ce soir-là que sa main restât dans la sienne.

Le soleil, en baissant et rapprochant le moment décisif, fit battre le cœur de Julien d’une façon singulière. La nuit vint. Il observa, avec une joie qui lui ôta un poids immense de dessus la poitrine, qu’elle serait fort obscure. (…)

On s’assit enfin, madame de Rênal à côté de Julien, et madame Derville près de son amie. Préoccupé de ce qu’il allait tenter, Julien ne trouvait rien à dire. La conversation languissait. ”Serai-je aussi tremblant et malheureux au premier duel qui me viendra ?” se dit Julien (…).

Dans sa mortelle angoisse, tous les dangers lui eussent semblé préférables. Que de fois ne désira-t-il pas voir survenir à madame de Rênal quelque affaire qui l’obligeât de rentrer à la maison et de quitter le jardin ! La violence que Julien était obligé de se faire était trop forte pour que sa voix ne fût pas profondément altérée; bientôt la voix de madame de Rênal devint tremblante aussi, mais Julien ne s’en aperçut point. L’affreux combat que le devoir livrait à la timidité était trop pénible pour qu’il fût en état de rien observer hors lui-même. Neuf heures trois quarts venaient de sonner à l’horloge du château, sans qu’il eût encore rien osé. Julien, indigné de sa lâcheté, se dit : ”Au moment précis où dix heures sonneront, j’exécuterai ce que, pendant toute la journée, je me suis promis de faire ce soir, ou je monterai chez moi me brûler la cervelle“.

A prontidão com que Julien se submete à pressão de um termo dies certus an certus quando, solenemente anunciado pelos carrilhões de um relógio, dir-se-ia à partida secundária à sua decisão inicial de perspectivar a corte como um combate, e o enlace de mãos como um dever. É, na verdade, extremamente significativo que o derradeiro impulso, mais uma vez exterior, seja programado por Julien como urgência de último recurso. Fiel e forte nas suas convicções, o nosso herói precisa no entanto de um estímulo tão absurdamente deslocado dos impulsos do amor e tão friamente mecânico como o soar de uma hora determinada antes que possa executar os seus melhores planos.

Bem se poderá dizer; Julien não ama, mas essa conclusão também nunca deixou de ser óbvia. O que é realmente admirável é ver como Julien escolhe o método de amor. A sua extrema artificialidade de homem de princípios é um pretexto de reflexão para os leitores que com ela se deparem. Com estes parágrafos, surpreendi em mim mesmo alguns sorelianismos de que já me apropriei, no passado, como muleta literária para superação de momentos que — não devido a um sentido de combate social mas a ditâmes lamecha e estritamente amorosos — como um colosso sem solução se me opunham. A leitura continuada do Vermelho e do Negro demonstra mais tarde o que será desse Julien quando for confrontado com sentimentos de genuína comoção sentimental. Onde estão esses mecanismos, Sorel, quando o teu coração verdadeiramente se apressa? Onde esse dever, onde essa vinculação? Onde a racionalidade que impediria o crime pelo qual te condenarão?

Après un dernier moment d’attente et d’anxiété, (…), dix heures sonnèrent à l’horloge qui était au-dessus de sa tête. Chaque coup de cette cloche fatale retentissait dans sa poitrine, et y causait comme un mouvement physique.

Enfin, comme le dernier coup de dix heures retentissait encore, il étendit la main et prit celle de madame de Rênal, qui la retira aussitôt. Julien, sans trop savoir ce qu’il faisait, la saisit de nouveau. Quoique bien ému lui-même, il fut frappé de la froideur glaciale de la main qu’il prenait; il la serrait avec une force convulsive; on fit un dernier effort pour la lui ôter, mais enfin cette main lui resta.

Son âme fut inondée de bonheur, non qu’il aimât madame de Rênal, mais un affreux supplice venait de cesser.

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Sobre os contextos

No texto anterior fiz uma menção imperceptível à rigidez dos contextos e, por extensão, ao severo jugo que nos impõem. Estava na verdade a pensar num pequeno painel electrónico que me cativou a atenção no Centro de Arte Moderna de Santiago de Compostela, algures na noite granítica da cidade velha.

Por essas alongadas galerias compostas pelo floreado pulso de Siza Vieira, fui massacrado durante algumas horas pela exposição consagrada à fotografia de alguns dos artistas da chamada Escola de Boston. O termo é enganador e parte de um dos membros da própria “Escola”, um dos poucos ainda vivos (Nan Goldin). Os restantes foram ficando pelo caminho: suicídio e sida parecem ter as grandes causas de óbito de uma geração que teve o mérito de procurar fazer coisas inenarráveis com as suas fotografias através da representação de realidades indignas da película (o perigo embotador disto é que, para a minha geração, uma tal atitude é demasiado óbvia e, de tão pré-adquirida, convola-se um pretexto para não ser seguida). Mas foi uma incursão inesperada por algumas das fotografias mais conhecidas de Diane Arbus e Philip-Lorca DiCorcia, entre outros, incluindo o genuinamente perturbador Mark Morrisroe.

Todavia, era fora das galerias, escondidinho numa esquina da livraria térrea, que um painel empertigado propunha uma visão sobre a rotina e o contexto. Um corte transversal de um edifício de apartamentos e a rua à sua frente mostrava, em animação simplista, as vicissitudes diárias de um conjunto de habitantes e transeuntes. Via-se cada divisória: cozinhas, quartos, salas de aula, um ginásio, uma estrada e passeio, um sótão, e assim por diante. No alto, um pequeno relógio e uma nesga de céu com um sol ou uma lua marcavam as marés humanas. Pequenas figuras feitas de pauzinhos brancos ou pretos marchavam, viviam e morriam naquele quadro: o ciclo dos dias era ininterrupto.

O contexto é o elemento central da individualidade. Noção central. Só pela sua superação se atinge a dissemelhança que tantas vezes cumpre o traje da natureza genuína. Por isso, a mensagem não podia deixar de ser clara: aquelas figuras de pauzinhos não se alimentavam de volições ponderadas e depuradas dos elementos exteriores do espaço ordenado, mas antes como se fossem as próprias divisórias a narrar-lhes o que deveriam fazer.

Por vezes havia várias dimensões do mesmo contexto. Assim, uma divisória ditava um comportamento diferente dependendo da hora do dia ou da actividade circundante (rectius, da existência e “modo” das divisórias circundantes). No mesmo quarto, as personagens ou dormiam, ou liam, ou fodiam, ou preguiçavam, escravas da hora do dia. Mas nada mais. Ninguém dançava no quarto, ou escrevia uma carta na cama. Não se praticava ginástica na sala de estar. Ninguém fazia amor no terraço, ao sol. Havia sempre alguém a ver televisão (e praticamente todos o faziam a partir das 8 da noite – os solteiros demoravam-se mais). Naquela transfiguração do espaço como elemento externo compressor de vontades, tudo era mecânico, desapaixonado, sem sequer o propósito simplificador e funcional da rotina empenhada.

E no fundo isto é Édipo. Um magote de gente em plena posse da sua autonomia e livre-arbítrio que seguem nas tarefas pré-ordenadas de uma colectividade organizada em direcção a um final conhecido. Tudo o que dizemos, de um modo ou outro, é ironia e profecia.

O Coro pergunta-nos: Porque deveremos dançar?

E nós respondemos, sem vergonha: Não sabemos, Coro.

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Apologia do esquecimento

Têm razão os senhores da Natureza do Mal quando escrevem o que escrevem sobre as responsabilidades inerentes à manutenção de um blog. Pela minha parte, tratam-se de obrigações naturais, para usar gíria do meu quotidiano — puramente reflexivas — não exigíveis — talvez por isso mesmo, mais pesadas que as normais. Mas no fundo é preguiça.

Em todo o caso, as desculpas pela ausência, mesmo diante de um auditório vazio, são uma das muitas cenas que se tem de ensaiar ao longo da vida. A partir do momento em que o contexto principia a definir um homem (deixando eu de quebrar o conjunto para renunciar a individualidade) um acto como este torna-se quase expectável, obrigatório.

A justificação tem sempre que ver com o trabalho, para quem trabalha; com o estudo, para quem estuda; com a vida, para quem a vive; com a preguiça, para quem tem a sorte de preguiçar; com o amor, para quem pode amar. Dizendo de outra maneira, com as obrigações de uma vida invariavelmente preenchida por peças que eu não sei denominar e que de algum modo, não me pertencem (como o puzzle de vida daquele Voyageur Magnifique que, no final da montagem do quadro, guarda umas peças na mão, sinal meio fútil de si próprio).

Por vezes, raramente, uma centelha minguante de calor ao final dos dias, extinguindo-se pela noite dentro. Não um clarão de desespero, como aquela  terrível light [that] gleams once, and then it’s night once more, mas algo mais gradual e humano, mais observável e doloroso. Por exemplo, sim, como o quadro de Friedrich, um pouco acima, como uma memória nascida de um momento sonolento em serões disconexos. Quase renuncio à juvenilidade que é falar dos meus crepúsculos como as horas que perduram em expectativa daquela voz que me encantou, daquele olhar que não se deixou definir pelos meus regougos performativos objectivo correlativos diegéticos inteiramente patéticos.

Flit. Porque no Tegner’s Drapa de Longfellow, há um lindo e selvagem panegírico (quasi un parodos) que já tocou almas maiores que a minha.

“I heard a voice, that cried, / “Balder the Beautiful / Is dead, is dead!” / And through the misty air / Passed like the mournful cry / Of sunward sailing cranes.”

Assim atravessa o esguio poema o grito ondulante dos canaviais nórdicos para terminar numa proposta de esperança. “But out of the sea of Time / Rises a new land of song, / Fairer than the old. / Over its meadows green / Walk the young bards and sing.”

Esperemos que assim seja.

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Gostaria de descrever

gostaria de descrever a emoção mais simples
alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
procurando chegar a dardos de chuva ou sol

gostaria de descrever a luz
que está a nascer em mim
mas sei que não se parece
com nenhuma estrela
porque não é tão brilhante
nem tão pura
e é inconstante

gostaria de descrever a coragem
sem arrastar atrás de mim um leão poeirento
e também a ansiedade
sem agitar um copo cheio de água

dizendo de outra maneira
daria todas as metáforas
em troca de uma palavra
arrancada do meu peito como uma costela
por uma palavra
contida dentro dos limites
da minha pele

mas aparentemente isso não é possível

e só para dizer — eu amo
corro em círculos como um louco
apanhando mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que afinal de contas não é feita de água
pergunta à água por um rosto

e a ira
diferente do fogo
pede-lhe emprestada
uma língua loquaz

tudo tão emaranhado
tudo tão emaranhado
em mim
que o senhor de cabelo branco
desfez o emaranhado de uma vez por todas
e disse este é o sujeito
e este é o complemento

adormecemos
com uma mão debaixo da cabeça
e com a outra
num aterro de planetas

os nossos pés abandonam-nos
e tocam a terra
com as suas raízes minúsculas
que de manhã
arrancamos dolorosamente

Zbigniew Herbert

Retirado da antologia Escolhido pelas Estrelas (Assírio & Alvim)

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No sofá com Aristófanes

Sobre os ombros reclinados de Aristófanes — que não é certamente o mais feliz contemplado do discurso platónico presente no Simpósio (ou no Banquete, se preferirem) — recai a tarefa de expor algumas das teorias mais bizarras, arcanas e hesiódicas sobre a concepção e o procedimento do amor. A mera técnica narrativa já seria, por si, suficientemente admirável, mas é o sub-contexto que me permite interpretar a tão espalhafatosa intervenção do dramaturgo cómico.

Naquele semi-círculo de amigos recostados, a ordem dos sofás faria de Aristófanes o terceiro orador da noite. Infelizmente, o pobre homem foi acometido por um violento ataque de soluços e teve de ceder o seu lugar a Erixímaco, um médico. Esta vicária figura sugere ainda três medicamentos a Aristófanes: que susta a respiração, que gargareje em água, ou então que espirre provocadamente.

Antes mesmo de Aristófanes começar, já se nos alojou uma imagem rocambolesca do futuro interveniente. A sua eulogia, que noutras circunstâncias poderia receber um tratamento mais sério e uma refutação socraticamente metódica, é ao invés acolhida como um conjunto de concepções ultrapassadas. Que nos diz o ateniense? Que no início dos tempos todos os seres humanos estavam ligados a outro, que eram seres duplos cujas faces olhavam em direcções diferentes e que possuíam dois sexos ao mesmo tempo. Que havia monstrengos destes que eram duplamente homens, outros que eram duplamente mulheres, e ainda outros que eram literalmente andróginos. Como se portaram todos muito mal e começaram a tentar suplantar os domínios do céu, o Crónida ponderou a sua destruição. Mas não desejando privar-se das suas libações, optou antes por enfraquecê-los: dividiu os corpos em metade e espalhou-os pela terra. Tal o sentido do amor, tal a explicação para a sensação de integralidade que os enamorados exprimem quando encontram o seu par há muito perdido.

Seja sátira, eulogia do absurdo ou mera contextualização, o discurso de Aristófanes é fascinante. Ao nível mais básico, desvenda o amor como uma busca meta-humana de globalidade, de completude. Na demanda pela integralidade, suportada por uma paráfrase do sentido acrescido que uma vida a dois proporciona, a alegoria não desculpa a homossexualidade: justifica-a. É uma teoria pura: amamos por que isso nos torna completos. Mas os alicerces bizarros de toda esta confusão mitológica, intercalada pelos soluços e o tom de Aristófanes, impedem qualquer análise mais demorada.

Penso que poucas pessoas hoje defenderiam, com Sócrates e a tal Diotima que lhe ensinou “tudo o que ele sabia sobre o amor” (ah, safado!), que o amor pode ser reconduzido a uma via para a imortalidade, nisto implicando forçosamente a possibilidade da procriação. Mesmo que isso esteja correcto, já deixámos de ser sensíveis ao ponto há algumas décadas, e nem sequer a legislação civil o reflecte. Predispostos à brecha do isolamento, empedernidos face ao clamor pela perpetuação da nossa carne, aproximamo-nos novamente dos argumentos de Aristófanes, embora obviamente despidos de toda a mitologia bacoca circundante.

Há outro pormenor. No simpósio, todos os convivas partilhavam um divã com outro homem. Até no caso de Fedro e Pausânias fica a impressão de que outros convidados — cuja notoriedade não chegava para lhes comprar um discurso ou um nome —  refastelavam-se no mesmo espaço que eles. Outros, como Sócrates, acabaram mesmo num divã com três pessoas (ah, safado!).

Mas há fortes indícios de que Aristófanes estava sozinho no seu sofá enquanto compunha a eulogia.  Tanta palavra, tanta explicação sobre o ardente sentimento de integralidade oferecido pelo amor, e afinal Aristófanes estava sozinho. A figura do cómico atravessa a eulogia do absurdo para desaguar numa figuração quase trágica. Segundo a sua própria lição, ele ainda não encontrara a essencialidade de uma vida partilhada; ainda não encontrara o amor. E é demasiado fácil imaginar aquele homem encolhido no sofá, gesticulando, recorrendo a historietas de contornos arcaicos, esforçando-se por compreender e aceitar uma realidade que lhe é afinal estranha e ilusória.  Não percebo porque dizem que a tragédia humana, entendida nas pequenas coisas do sentimento, só foi inventada séculos mais tarde. Platão surpreendeu-me com um Aristófanes humanamente iludido e, embora ande a abusar muito da palavra, também comovente, sim.

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A eulogia de Aristófanes

Muito fofo e vagamente perturbador. Aí a meio, lembrei-me de Robin Waterfield que tem uma anotação, algures na sua tradução do Simpósio, sobre a referência de Aristófanes ao método de reprodução das cigarras: “It is unclear what Plato is referring to when he mentions cicadas, but at any rate, he is wrong; they have perfectly normal sex.” Enfim, cito de memória, mas depois corrijo o que estiver errado quando chegar a casa.

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Flagrantes quinzenais

  1. Os momentos de consolação assistida (ou exterior) são sempre os mais divertidos. Refiro-me às situações em que as circunstâncias do caso parecem pedir algumas palavras de um de nós, ou então quando a nossa atitude faz com que outros se sintam na obrigação de laudar uma qualquer qualidade como forma de distracção dos principais problemas. O potencial para meter a pata na poça é gigante. E esta última modalidade sempre oferece o consolo de me deixar com o sórdido contentamento do ridículo a que me acho submetido durante o próprio processo de consolação. Para concretizar, digamos apenas que uma óptima versão deste género de argumento consiste na exaltação do valor da  companhia. Vamos ignorar que a outra pessoa pode não querer ser boa companhia, mas a ocasião em si mesma. Vamos ignorar que esse é precisamente o problema.
  2. Sobretudo, muito cuidado com a argumentação supra mencionada em dias de S. Valentim. Já me basta ter lido a história de Dafne e Apolo na véspera. O coração humano não aguenta tanto.
  3. Pela primeira vez numa década, participei activamente nas algazarras do carnaval, compondo uma vestimenta improvisada. Infelizmente, ninguém sabia o que era um poeta laureado nem nunca vira uma gravura de Dante ou Petrarca. Passaram o resto da noite a confundirem-me com um gnomo ou um imperador romano. Já alguma viste o Júlio de gorro, estúpido? As coisas descambaram pouco depois.
  4. Tenho feito progressos miseráveis no meu estudo dos clássicos. Queria passar já para os medievalistas ingleses e começar a formar a escoliose associada ao porte do Riverside Chaucer, mas a verdade é que ando distraído. Não ajuda que os meus vizinhos sejam mais barulhentos que uma horda selvagem de estudantes de ciências na biblioteca da FLUL durante a época de exames.
  5. Uma boa experiência: dei a ouvir a Waldstein e a Appassionata a algumas pessoas no decurso do fim-de-semana, enquanto estava atrás do volante e tinha monopólio sobre o programa musical. Um dos animais ficou completamente indiferente. Outros dois comentaram as peças e atribuíram-nas confiantemente a dois artistas completamente diferentes. Para evitar hemorragias cerebrais, apressei-me a trocar os discos. Mas no dia seguinte, uma última passageira disse, muito simplesmente, que estava a apreciar ouvir as sonatas. Não quero saber se as reconheceu: foi tudo o que bastou para me deixar feliz. Prometi-lhe tocar a Pathétique daqui a alguns tempos.
  6. Como a República me começou a dar uma dor de cabeça, interrompi a leitura e virei-me para as Metamorfoses. Já percebi que vou ter de reescrever tudo o que já aqui coloquei sobre Ovídio. Até lá, só posso sublinhar que experimento um inesperado prazer com esta leitura.
  7. Não era nada de extraordinário. Depois a dada altura reparei que os meus olhos se humedeciam: as lágrimas começaram a correr pelo meu rosto.” Foi assim que Arthur Rubinstein descreveu a sua primeira experiência com um concerto de Sviatoslav Richter, e só me apetece transplantar estas palavras para o meu entendimento das últimas três sonatas de Schubert (D958, D959, D960), as crepusculares, as derradeiras, as cíclícas. Mas também as esperançosas. Três dos momentos mais acutilantes de uma existência humana que, diante da sua própria obliteração, conjugou a universalidade da finitude com a elegância terrena da música.
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