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Nove dedos de violência

Algures durante a passada quadra natalícia, dei por mim a ombrear com um colega de trabalho que se revelou um voraz leitor de fantasy. Não um leitor de literatura fantástica, note-se, não um leitor de fantasia, de mitos, ou até mesmo de faerie. Um indómito leitor de fantasy, sem vergonha de utilizar a palavra numa conversa oral e sem medo de sobraçar um volumoso paperback  no caminho entre o metro e o escritório (e notem que a ilustração de capa desse livro era digna de figurar em qualquer álbum dos Rhapsody).

Para o arreliar um pouco, vai de fingir interesse e lhe pedir algumas recomendações no género que – conhecidos clássicos à parte – me permanece berrante e ignoto. Acabei por descobrir que eu lhe levava o avanço de leitura dos seis estupendos livros de Dune (e que raio de fã de fantasy não lê Frank Herbert?), e que o facto de eu ser um modesto conhecedor das genealogias do Silmarillion me habilitava para além do título de iniciado no género. Eis senão quando ele me promete trazer um livro que reunia os méritos de uma obra recente e de um porta de entrada no disputado mundo de fantasy.

Bem, não esperava tamanha solicitude. Apesar de tudo, esse pequeno advogado fiscal, para além de sonhar com dragões e elfos e realizar auditorias, também é muito simpático. Com a pontualidade de um devedor com a morada de família hipotecada, encontrei na minha mesa, no dia seguinte, The Blade Itself, primeira parte de uma inevitável trilogia por um tal Joe Abercrombie.

Um inconveniente de se seguir uma leitura programada que assenta em grandes clássicos, grandes obras, grandes autores, grandes narrativas, grandes ideias, grandes instruções, grandes marcos, grandes personagens – o problema com tudo isto, dizia, é que nos esquecemos facilmente de como existem bons escritores que não querem saber da condição humana ou seus conflitos interiores num mundo de convergências emocionais e religiosas, nem estão interessados em desenvolver escolas de pensamento sistemático a partir de belas narrativas existencialistas. Há quem escreva somente por gosto e com gosto, desejando urdir histórias e enredos que apelem directamente ao mais jovial sentido de diversão e escapismo (aqui entendido na esteira deste histórico ensaio) e inflamem a imaginação do leitor. É uma maravilha lê-los.

The Blade Itself não é um mau livro mas chega a entreter o leitor como se o fosse, narrando a história de três reinos em guerra, e de alguns heróis (um bruto, um mago, um cavaleiro e um inquisidor sádico) que aí viajam e batalham. De Abercrombie pode-se dizer que é um escritor competente: por mais de uma vez quedei-me, um tanto incrédulo, perante a força da sua narrativa sincopada e o ritmo que ele imprime a determinadas cenas. A capacidade de delinear os movimentos concretos de uma bagarre sem esmagar o leitor com pormenores supérfluos que afectem a ligeireza do registo permanece uma qualidade invejável nesta linha de ficção.

No seu cadastro fica apenas a inclinação para tingir tudo com demasiada hemoglobina espirrante (quando o bárbaro Logen “Nove-Dedos” entra em cena) e engordar alguns capítulos para além do razoável (quando o inquisidor Glokta começa a divagar). O pecado capital de encetar uma balofa trilogia – quando um livro chegaria perfeitamente – também não é algo que eu consiga facilmente perdoar.

Deparamo-nos assim com um género de incontinência soliloqual que se esperaria de um God Emperor of Dune, com direito a toda a verbosidade de um Leto mas sem um décimo da sua beleza filosófica e política. Quando isto não sucede e a narrativa prossegue desimpedida, o leitor defronta-se ainda com um uso liberal de profanidades que, despido de critérios judiciosos de aplicação, causa grande perplexidade e transforma o que poderia ser uma ferramenta útil de caracterização num artifício juvenil.

O seu registo – que tão bem serve a acção – revela-se seco e atabalhoado quando se trata de enveredar por cenas amorosas ou descrições mais íntimas. A verdade é que a galeria de figuras femininas também não ajuda: Abercrombie parece incapaz de densificar as escassas donzelas que nos poderiam agraciar mas que se vêem esquadrinhadas em papéis cansados (como a “menina-burguesa-que-não-pode-casar-com-o-bonzão-de-sangue-nobre”, a “menina-selvagem-guerreira-que-quer-matar-toda-a-gente”, ou até a “bruxa-de-proporções-amazónicas-ao-serviço-do-mauzão”).

Não sendo o livro um monumento à originalidade (está ainda por escrever a nova matriz da literatura fantástica), consegue-se aqui algo claramente superior à soma das partes individualizadas. As personagens são amigáveis, o enredo interessa, e a meio do livro é possível que o leitor se ache – como eu me achei – genuinamente interessado no desfecho, com o género de atenção que dedicaria a um gostoso policial. Mesmo que para isso tenha de suportar umas tantas páginas supérfluas.

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